Na rua Conselheiro Cotegipe (...) havia uns casebres, para dentro do alinhamento, com um terreiro e um vasto quintal, aos fundos, habitados por negros. Muitos deles, diziam-se ex-escravos. Na época, era difícil encontrar-se um negro velho que não se dissesse antigo escravo e veterano do Paraguai... No dia 12 de maio, à véspera, portanto daquela data, à boca da noite, começavam a chegar negros que nem formiga. Vinham sozinhos ou em magotes, todos empunhando os mais variados instrumentos: bombos, chocalhos, pandeiros, atabaques, triângulos, maracas, tamborins, reque-reques, puítas, urucungos, marimbas, adufes e outros, herdados, quiçá, dos seus ancestrais africanos. Surgiam tantos, que parecia incrível coubessem naquele reduto. Seu chefe era o Barnabé(...) O samba de então era bem diferente do atual. Não passava de um exótico amálgama das numerosas danças regionais, da capoeira, do lundu, do jongo, do batuque, do cateretê etc. Depois dos comes-e-bebes, de muita cachaça ou quentão, os negros animavam-se, e aí começava o samba de roda. Sob o som infernal dos instrumentos de percussão, onde se destacava o toque surdo dos bombos e dos tambores, iniciava-se a noitada. Formava-se uma roda no terreiro um dos parceiros pulava para o centro e começava a cantar, saracoteando-se todo: 'Oi, embaré, oi embará! Balança que pesa oro não pode pesa metá!' (...) O batuque ia esquentando. Em pouco tempo, vários pares pulavam no centro da roda, enquanto os demais batiam palmas, compassadamente. Eram movimentos alucinantes, desenfreados, contorsões grotescas, sem ritmo nem graça, numa coreografia primitiva, onde as negras de bunda grande ( negras iça ) remexiam loucamente as cadeiras, lascivas e lúbricas, entre tapas e beliscões nas partes mais salientes. E o coro prosseguia (...) E nessa toada varavam a noite. No fim, nada mais se entendia. era uma sarabanda de mil diabos, um caia por cima do outro, numa promiscuidade danada. Muitos pares sumiam para o fundo do quintal, onde havia umas bananeiras e pés de mamona. Na roda, ainda resistiam alguns, dançando, ou melhor, pulando alvoroçados, num insuportável intercâmbio de bodum. E o samba continuava até o dia raiar3.
3 PENTEADO, Jacob. Belenzinho, 1910 (Retrato de uma época). São Paulo, Livraria Martins Editora, 1962, pp. 215-218.
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